F1: Como a dupla Schumacher e Todt transformou a Ferrari
Nesse dia em 2002, o heptacampeão conquistou seu 100º pódio na F1 ao vencer o GP do Brasil, em meio a uma era dominante da Ferrari
Prosperar e falir: esse era o jeito da Ferrari. Nos momentos mais prósperos, a visão era de tirar o fôlego. Ascari, Fangio, Hawthorn, Hill, Surtees, Lauda, Scheckter... esses foram membros abençoados do clube mais exclusivo da Fórmula 1, todos tendo enchido os pulmões com o ar inebriante e rarefeito como campeões mundiais pela Ferrari.
No entanto, como acontece com os homens, o oxigênio azedou com a inevitável queda. Turbulência contundente, decepção amarga e, sim, até a morte pareciam seguir a aparente unção da imortal italiana. Essa era a natureza da vida em Maranello, e tornava a Scuderia ainda mais chamativa.
Mas, havia algo diferente na versão da Ferrari de Jean Todt e Michael Schumacher. Essa equipe venceu... e depois continuou vencendo por anos.
Water sprays from the rear tyres of Michael Schumacher, Ferrari F2003-GA, in the pits
Photo by: Ercole Colombo
A equipe que eles forjaram, usando o brilhantismo clínico de Ross Brawn e Rory Byrne, era uma Ferrari que nunca havíamos visto antes. E provavelmente nunca veremos novamente.
Tudo parecia correr a seu favor: politicamente, a Ferrari exercia mais influência do que qualquer outra equipe, e ganhava mais dinheiro como consequência; os cínicos gostavam de alegar que a FIA significava, na verdade, "Assistência Internacional da Ferrari", quando decisões e recursos saíam a favor da Scuderia. Até os pneus da Bridgestone foram moldados perfeitamente às suas exigências. Não admira que as vitórias continuassem chegando.
Michael Schumacher, Ferrari F2003-GA
Photo by: Ercole Colombo
Essa não era a Ferrari de Enzo, toda feita em talento e falhas em medida igual; essa era uma máquina, uma visão da perfeição da F1, projetada para entregar o melhor resultado final, repetidamente - não importava o quê. Mas a era que quebrou os recordes (e as vezes quase estrangulou a F1) levou tempo para ser criada.
Todt estava em sua sexta temporada no comando quando a Ferrari conquistou um Mundial de Construtores, e sete para que Schumacher finalmente encerrasse a seca que importava para a maioria: suceder Scheckter e se juntar à lista de campeões da Ferrari na F1.
German GP winner Michael Schumacher, Ferrari, second place Felipe Massa, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
É fácil esquecer a pressão que Todt enfrentou nos primeiros anos, quando o roteiro parecia ser o mesmo das temporadas anteriores. Após Luca di Montezemolo contratá-lo em 1993, o plano inicial exigia rostos familiares.
A genialidade de John Barnard levou a Ferrari a ficar próximo de um título com Alain Prost em 1990, mas o experimento de glória de Guildford se desfez muito antes do movimento suicida de Ayrton Senna na Curva 1 do Circuito de Suzuka. A política dentro da Fiat e a falta de confiança deixaram o plano no chão. Mesmo assim, após apenas três anos, Todt e di Montezemolo estavam tentando de novo.
Queimado por sua fase na Benetton, Barnard retornou para a segunda parte de sua revolução na Ferrari - e você mal podia ver a costura. O Departamento de Design da Ferrari (FDD) substituiu o Escritório Técnico de Guildford (GTO), mas estava baseada na mesma cidade de Surrey, e mais uma vez sua ambição era ficar sozinho para projetar. O trabalho de Todt era protegê-lo das distrações do dia a dia das corridas.
John Barnard (right) with Jean Todt
Photo by: Ercole Colombo
O esbelto e discreto 412T de 1994 certamente prometia. Mas, o que havia mudado? Barnard enfrentou as mesmas velhas frustrações: um departamento de motores que não seguia suas ordens e as constantes crises na pista. A vitória de Gerhard Berger em Hockenheim terminou uma dolorosa seca de quatro anos, mas não era suficiente. Momentos pontuais contribuíram para que o papel principal fosse desempenhado pela Williams e, mais significativamente, pela Benetton - a equipe que Barnard acabara de sair
Gerhard Berger, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
Diante do domínio do Renault V10, a Ferrari persistiu com seu amado V12 em 1995. A recompensa dessa vez? Novamente apenas uma vitória, com Jean Alesi no Canadá, a bordo do belo 412T2. A mesma história de sempre. Aí Todt assinou com Schumacher.
O primeiro título de Schumacher, havia sido contaminado pela morte de Senna em Ímola, a batida desajeitada com Damon Hill em Adelaide, e as insinuações persistentes de que a Benetton tinha vantagem com o controle de tração. Mas, em 1995, as evidências comprovaram o óbvio: Schumacher estava em um nível próprio.
Já houve um tempo que um piloto era tão melhor que os demais? Fangio tinha Ascari, e depois Moss. Clark? Com certeza ele estava muito acima dos demais em meados dos anos 60, mas pelo menos ele tinha Surtees, Gurnet, Brabham e Hill para competir. Depois, Stewart tinha Rindt e Fittipaldi; Lauda tinha Hunt e Andretti; Prost e Senna tinham um ao outro, além de Piquet e Mansell.
Italian GP start action: Alain Prost leads Jean Alesi as Ayrton Senna flies over Damon Hill
Photo by: Ercole Colombo
Mas e Schumacher no meio da década de 90? Quando Senna e Prost haviam saído, ele tinha o valente Hill (geralmente em um carro mais rápido), talentos de segundo escalão como Berger e Alesi, um Mika Häkkinen que ainda estava amadurecendo... Todt sabia que ele era o seu homem, o único divisor de águas no grid.
E, de alguma forma, apesar de tudo o que tinha na Benetton, Schumacher também precisava da Ferrari. Williams pode ter oferecido títulos instantâneos; a Mercedes, com quem ele havia amadurecido correndo com carros esportivos, estava se tornando uma força crescente junto com a McLaren; mas na Ferrari... ele viu que tinha a chance de construir algo significativo.
Alain Prost, Ferrari 641
Photo by: Ercole Colombo
Prost, e aparentemente até Senna, haviam sentido atração por Maranello. Fernando Alonso e Sebastian Vettel também seguiriam o chamado anos depois. Schumacher simplesmente não podia resistir - e o cheque de 25 milhões de dólares por ano pode ter ajudado.
Mas ele sabia no que estava se metendo. A Ferrari da época de Barnard e Todt, havia sido pouco alterada em comparação à equipe da década de 80. Acabar com a seca de títulos era uma aposta, independente do dinheiro. Com apenas 26 anos, Schumacher estava arriscando seus melhores anos em uma equipe fora de sintonia com os tempos.
Ainda assim, o casamento começou bem. Após seu primeiro teste, em Estoril, Schumacher chegou a declarar que poderia ter conquistado o título de 1995 mais facilmente se estivesse com o 412T2 em comparação à sua Benetton. Ah, e ele foi um segundo por volta mais rápido que Berger e Alesi.
Michael Schumacher, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
A realidade foi bater mesmo em 1996, com o desagradável F310 de Barnard. Três vitórias, incluindo uma histórica na Espanha. Não era ruim, mas ao se juntar à Ferrari, Schumacher sabia que havia perdido qualquer esperança de um tricampeonato consecutivo. Todo seu Hill...
Para ser justo, a aposta poderia ter valido a pena em 1997, porque Schumacher manteve brilhantemente a Ferrari na briga pelo título contra a Williams superior de Jacques Villeneuve. Então todo o seu trabalho foi ofuscado por outra horrenda falta profissional. Jerez e aquele toque que saiu pela culatra selaram o status de arqui-vilão de Schumacher. A FIA tirou seu segundo lugar no Mundial, mas ele manteve suas cinco vitórias - uma punição sem sentido.
Michael Schumacher, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
Aquele carro de 1997, o F310B, foi o último de Barnard na Ferrari. Todt sabia que seu grande experimento havia acabado, e era hora de dar nova vida à Maranello. Quando Barnard saiu de cena, Todt contratou os homens que fizeram Schumacher.
Ross Brawn e Rory Byrne haviam testemunhado de perto como que a mudança de Schumacher para a Ferrari havia prejudicado a busca da Benetton por mais títulos. Nem Alesi nem Berger puderam conquistar uma vitória em um carro que certamente teria sido vencedor nas mãos de Schumacher em 1996. O diretor técnico e o designer-chefe mudaram o curso de suas vidas em direção ao vermelho.
Em 1998, o F300 de Byrne seria o modelo para as fantásticas máquinas que seguiriam, mas a primeira McLaren de Adrian Newey, o MP4-13, atrasaria o início de sete Mundiais da Ferrari. Para um talento tão inovador, a ascensão de Häkkinen à grandeza foi algo surpreendente, que se construiu lentamente, mas, quando atingiu o pico em 1998 e 1999, Schumacher havia finalmente encontrado um rival digno. Durante uma volta, o finlandês era provavelmente mais rápido, e com Newey ao seu lado, ele tinha uma vantagem palpável.
Eddie Irvine and Michael Schumacher, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
A Itália estava ficando cada vez mais impaciente, e a tensão só aumentou quando Schumacher quebrou a perna em Silverstone em 1999. Lá ia embora mais um título. Ou não? Eddie Irvine nunca havia oferecido mais que uma performance sólida como número dois, mas havia algo escondido ali.
Quando Häkkinen perdeu o foco sem a ameaça de Schumacher, Irvine assumiu a função - e quase roubou a coroa do finlandês. Que irritante para Schumacher, ao voltar após perder seis corridas, ter que ser o obediente número dois para Irvine no primeiro GP da Malásia. Pole (por mais de um segundo) deixou claro o quão estranho seria se o irlandês tivesse sido o responsável por terminar duas décadas de mágoa.
Michael Schumacher, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
No final, o primeiro título de construtores desde 1983 foi conquistado, ajudado em parte por uma controvérsia técnica pós-Sepang. A vitória de Irvine, moldada quase que inteiramente por seu companheiro de equipe, parecia ter sido perdida no parque fechado, quando suas bargeboards (um termo desajeitado para esses apetrechos feios localizados na lateral do carro, atrás dos pneus) estavam fora dos parâmetros.
A Ferrari apelou e venceu. Como? O corpo diretivo achou que os meios de medição, usados pela própria equipe técnica durante toda a temporada e antes nao eram confiáveis... muito parecido com o veredicto. Quando o desafio de Irvine terminou mal no Japão e Häkkinen garantiu seu segundo título, a F1 suspirou aliviada.
Michael Schumacher and Jean Todt
Photo by: Ercole Colombo
Quanto tempo Todt teria durado mais se Schumacher, Brawn, Byrne e companhia não tivessem conseguido finalmente juntar as peças (brilhantemente) em 2000? A super equipe poderia ter sobrevivido, mas sem sua proteção contra a interferência da Fiat - sem mencionar a intromissão do presidente di Montezemolo, que Todt sempre mantinha à distância, duraria quanto tempo?
Schumacher derrotou Häkkinen na última etapa em Suzuka com a ajuda de outra estratégia magistral executada por Brawn. Era assim que seria a partir dali, como atestam os cinco títulos consecutivos de pilotos e 72 vitórias. Além do que já havia alcançado na Benetton, Schumacher passou os primeiros anos do novo milênio reescrevendo os recordes da F1.
Michael Schumacher, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
Nem tudo ia como ele desejava. A combinação da astuta Williams, a potência monumental do BMW V10, o eletrizante Juan Pablo Montoya e a determinação de seu irmão Ralf, fizeram Schumacher e a Ferrari a aumentarem o ritmo de tempos em tempos, enquanto uma nova ameaça da Finlândia quase atrapalhou o percurso de 2003 - com a ajuda de um novo sistema de pontos introduzido para suavizar o domínio da Ferrari. Se a única vitória de Kimi Raikkonen com a McLaren tivesse sido o suficiente para bater as seis de Schumacher naquele ano, a história certamente teria evocado uma injustiça no título.
Apesar de tudo, Schumacher continuou sendo uma figura polêmica. Além da ética questionável nas corridas, era um homem essencialmente privado que se protegeu de sua enorme fama global ao oferecer uma visão basicamente unidimensional do personagem por trás daqueles saltos violentos no pódio. Para muitos, ele não errava; para outros, era mais fácil admirar do que amar.
Podium: race winner Michael Schumacher, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
Mas, certamente, Todt é o maior responsável por como essa equipe da Ferrari é lembrada. Acima de tudo, ele merece grande crédito por contratar as pessoas certas e criar uma cultura vitoriosa. O que jogou contra ele foi a devoção cega à sua tarefa.
"Ganhar a todo custo" nunca foi tão flagrante: a controversa ordem de equipe na Áustria em 2002 e o incidente em Indianápolis em 2005 foram erros espetaculares. Todt parecia ter total desconsideração - tudo o que importava era o resultado certo para a Ferrari, e geralmente para Schumacher. Rubens Barrichello sempre soube seu lugar nesta equipe.
Rubens Barrichello and Michael Schumacher at Indy finishline
Photo by: Ercole Colombo
Mas Todt se importava com o que alguém pensava? Provavelmente não. E Enzo Ferrari poderia muito bem ter aprovado: o fundador, afinal, era o mestre em "agitar as pessoas". Talvez a Ferrari de Todt não fosse tão diferente assim.
Aquele ar de arrogância, de superioridade inquestionável? Ascari, Fangio, Hawthorn, Hill, Surtees, Lauda, Scheckter... eles teriam entendido.
Michael Schumacher, Ferrari
Photo by: Ercole Colombo
GALERIA: A trajetória pós-Ferrari dos responsáveis pelo sucesso da Scuderia
VÍDEO: Top 5 corridas mais geniais de pilotos na F1, por Felipe Motta
PODCAST #035 - Senna é o melhor piloto de todos os tempos da F1?
Faça parte da comunidade Motorsport
Join the conversationCompartilhe ou salve este artigo
Principais comentários
Inscreva-se e acesse Motorsport.com com seu ad-blocker.
Da Fórmula 1 ao MotoGP relatamos diretamente do paddock porque amamos nosso esporte, assim como você. A fim de continuar entregando nosso jornalismo especializado, nosso site usa publicidade. Ainda assim, queremos dar a você a oportunidade de desfrutar de um site sem anúncios, e continuar usando seu bloqueador de anúncios.